
Antes de ser mulher ou homem, sou o ser humano.
No passado, fui uma criatura completa, com encéfalo, hormônios, músculos, gordura e pele. Um coração palpitava em meu peito e o sangue circulava por artérias e veias, em permanente bailar de arrepios, caretas, sorrisos e lágrimas, fazendo-me capaz de interagir com a natureza e as demais espécies do planeta em resposta ao fenômeno de existir.
Hoje, dos pés à cabeça, meus 206 ossos não mostram características sexuais primárias, nem tão pouco secundárias.
Apesar da aparente ausência de sexualidade, sou mulher-osso-alicerce, energia criativa transformada em potência e articulada em ideias e ideais.
Tenho a posse de mim, num mundo em disputa diária pela propriedade de pessoas, como se objetos fossem.
Carente de neurônios, busco o diálogo comigo mesma e com meus pares, despida de preconceitos de aparência física, classe social, idade, nível de escolaridade, raça, etnia, religião e orientação sexual.
Mantenho ativos meus cinco sentidos. Mesmo sem boca, abro o sorriso; sem visão, procuro o olhar de todos os seres; sem ouvidos, registro sons da natureza e me divirto com odores e sabores.
Meu corpo de menina sofreu violência física, psicológica e sexual.
Não gostava dessa lembrança e minha mente ficou perturbada. Fui estrela na terra e hoje brilho no céu.
Minha caixa torácica vazia de pulmões um dia palpitantes ocupa-se por inteiro com sentimento fraterno, levado como guia militante ao me apresentar na oficina Saúde da Mulher: autonomia no corpo e na vida.
Eu era cadeirante e continuo na luta por acessibilidade urbana e consideração às pessoas com deficiência.
A defesa da dignidade humana e o respeito ao direito de ser mulher por inteiro alimentam-me a alma.
Posso parecer frágil, mas sustento com ânimo e perseverança o abraço esquelético, um tanto quanto desajeitado, dirigido a todas as mulheres e meninas, esqueletas e esqueletinhas, que carregam no íntimo essa insistente mania de ter fé na vida.